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Por que ler Vidas Secas

Como proposto por Martins (Martins, 2000) vou iniciar minha análise da obra tentando responder primeiro questões preliminares “Como se pode comparar diferentes experiências de leitura”, “O que é, afinal, o valor” e “O que é Romance”.

Martins mesmo (Martins, 2000) inicia seu texto dizendo que “quando começamos a estabelecer relações significativas entre o que nos cerca, também estamos começando a ler”, mais tarde, em minha opinião, ela resgata o ponto dizendo que “o ato interpretativo depende do conhecimento e das tendências do próprio crítico”.

Creio este ser o maior dificultador em se responder a primeira pergunta se considerarmos que “diferentes experiências de leitura” como experiências de diferentes pessoas, deste ponto a dificuldade é em se avaliar a própria crítica.

Todavia, caso o crítico seja o mesmo, e as “diferentes experiências” se remetem a diferentes livros, deve ser possível se ver uma tendência em suas interpretações e assim avaliá-las. Porém ainda seria necessário o acesso a diversas críticas deste mesmo autor (autor das críticas, não dos livros).

Já sobre o “valor”, também Martins (Martins, 2000) afirma, que “queira ou não, o valor das coisas surge em função de pontos de vista, nos quais se incluem as linguagens e os códigos culturais que a constituem”, corroborando essa ideia Costa (Costa, 2002) afirma ser fundamental para o entendimento de mensagens o compartilhamento de um mesmo idioma.

Dessa forma, fazendo um paralelo com a primeira questão, o “Valor” de uma obra apresentado em determinada crítica está relacionado diretamente aos “conhecimentos e tendências” do próprio crítico, sendo assim relativo a quem o determina.

Outro ponto comum a vários autores (Abranches, 2016, Costa, 2002 e Martins, 2000) peças de comunicação midiáticas em geral também tem uma intencionalidade de acordo com os objetivos de seu autor, inclusive comerciais, então, se considerarmos o “Romance” uma mídia também se deve pesar essas intenções na avaliação de seu valor. Assim como a própria crítica.

Se considerarmos o “Romance” como exclusivamente ficcional podemos pensar que seja, ao menos uma tentativa, de um ato narrativo compartilhado capaz de resgatar um contato mais íntimo e direto com a realidade, conforme Costa (Costa, 2002).

Ainda definindo Narrativas Ficcionais Costa (Costa, 2002) aspectos que considera importantes.
“inicialmente a construção de um espaço, a proposta de um lugar onde alguma coisa acontece e para onde nos transportamos (...) a presença de caminhos (...) a história é um trajeto ou um percurso, uma ação que se desenrola colocando em movimento e em conflito os personagens. Mas não é um trajeto determinado ou necessário, e sim uma proposta, uma sugestão para que o leitor encontre suas próprias picadas ou trilhas.”

Colocadas essas preposições em relação a análise da obra buscarei responder outras questões, ainda sugeridas por Martins (Martins, 2000).

Em vidas secas fica muito claro que a empatia em relação aos “códigos culturais” da obra influenciou diretamente minha percepção do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos (Ramos, 2019). Assim creio que uma das características que confere valor a obra é sua peculiaridade dialética, que o autor utiliza muito bem, inclusive como instrumento de ambientação na minha opinião e pode trazer uma riqueza de vocabulário ao leitor, sobretudo sendo esta mais jovem e de procedência urbana, talvez permitindo-lhe um vislumbre de uma cultura e realidade de si tão distante.

Ainda quanto a questão da condução da trama eu notei que o autor utiliza uma gama de instrumentos, tanto para ambientar o leitor, quanto para fluir a leitura de forma relativamente tranquila, mesmo considerando que este (o leitor) não tenha familiaridade com o vocabulário.

Dentre esses “instrumentos” ressalto a apresentação das personagens dividida em capítulos que também ambientam o leitor sob o ponto de vista de cada uma delas além de suas características enquanto atores da própria história. Além da noção de “caminhos” citada acima, ainda permite uma multiplicidade de signos (adultos, infantis, femininos, “interioranos), tantos quanto a multiplicidade das próprias personagens, talvez facilitando o processo de catarse.

Outro instrumento de narrativa e catarse muito claro é a personagem da Cachorra Baleia, destaque certo da obra, que além de ter uma construção capaz de levar a reflexões importantes, sendo igualada aos humanos e apresentada como um membro da família, o fato de ser essencialmente inumana ainda a faz um complemento ao narrador, que por diversas vezes se apoia em suas impressões para justificar a história.

E por fim retratar um interior de uma época de uma região e época específica do Brasil, mas com narrativas ainda tão presentes no país atual e em seus interiores, certamente são alguns motivos para a leitura da obra.

Ao compará-lo com outras obras, só posso fazê-lo dentro de meu limitado conhecimento literário, não gostaria de dispor de autores estrangeiros, pois creio que isso conflitaria nas questões dos signos já citados. Porém, limitado como já me declarei não posso deixar de pensar em Stephen King e J. R. R. Tolkien, pois considero ambos muito descritivos em seus estilos únicos.

Também tive uma impressão de uma escrita descritiva em Vidas Secas, porém diferente em estilo dos dois autores citados, em minhas leituras de Tolkien eu encontrei descrições, eu diria, literais em detalhes, capazes de realmente transportar o leitor aos locais ao ponto de sentir seus cheiros, porém muitas vezes cansativas, me recordo de um trecho de quase duas páginas descrevendo um arbusto em um de seus livros.

Stepen King por outro lado, nas obras que lí, me parece abrir mão do recurso da familiaridade, constrói as suas descrições baseado em locais que conhece e consegue transmitir, por pequenos detalhes, essa sensação ao leitor, como na descrição de uma casa em gente ao lago e seu balanço com colocações de quem já esteve alí.

Graciliano Ramos, em Vidas Secas, também me soou descritivo, mas em um estilo diferente dos exemplos citados, tornando as descrições mais leves e principalmente móveis. Descreve as roupas enquanto as personagens andam, os locais pelas perspectiva das mesmas e novamente a estrutura dos capítulos impacta, pois as diferentes perspectivas ocultam a descrição que poderia se tornar enfadonha e ainda, o narrador, conta com o auxílio de Baleia como contraponto em relação a percepção das outras personagens.

Deste ponto de vista eu expressaria uma preferência por Vidas Secas a obras de alguns outros autores, como os citados. Deste ponto de vista, claro.

Devido a estrutura dos capítulos já comentadas a obra se faz fluir ao seu modo, creio. Não conseguiria responder uma melhor maneira de fazê-la. Talvez, se o leitor tiver dificuldades com o vocabulário seja válido uma busca por seus significados durante a leitura, mas essa seria a minha única colocação além, quanto a fluidez da obra.

Considerando as minhas primeiras colocações, sobre os signos e a importância dos significados aos leitores, e por tanto aos críticos (no sentido de “aqueles que desejam opinar sobre a obra), eu creio que temos duas possibilidades de excelentes críticos, aqueles mais velhos e, provavelmente, mais próximos ao vocábulo e realidade  apresentadas no livro, assim podendo trazer, talvez, um posicionamento realista quanto as mensagens carregadas no texto.

Em contraponto, o oposto, como eu disse antes “jovens totalmente urbanos” que não tenham ligação direta com os “signos” apresentados na obra, contanto que despretensiosamente, podem trazer questões interessantes e renovadas, além das intenções do autor, que podem ser mais claras ao primeiro grupo, por tanto influenciando-o.

Por fim, creio que o livro valha a leitura, principalmente como um recorte bem criado de uma parte da cultura Brasileira, pelo ritmo de sua “proza” imposto pelos capítulos e a figura de Apoio da “Baleia” ao narrador e pela riqueza de símbolos e significado que pode resgatar para leitores mais jovens e inexperientes (no sentido de menor tempo de vivências).

Por Davi Fontebasso Marques de Almeida, 25 de julho de 2020.

Referências:

Abranches, Tabajara F. A perna quebrada da mídia escrita. São Paulo: Edição do Autor, 2016.

Costa, Maria C. C. Ficção, comunicação e mídias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.

Martins, Maria H. Outras leituras: literatura, televisão, jornalismo de arte e cultura, linguagem interagente. São Paulo: Editora SENAC São Paulo: Itaú Cultural, 2000.

Ramos, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2019.

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