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A Jornada do Herói (Parte 1 de 6): Eu faço música fácil que é para o povo cantar junto

Em algum momento, até procurei no google, eu ouvi a frase título desse post sendo atribuída ao Raul Seixas, e como diz o amigo André Campos, “a Literatura não acontece no vácuo”, o que eu concordo, a Cultura acontece como um todo, é um amalgama de cada um de seus elementos cinema, teatro, literatura, jogos, música, etc, etc, etc, ocorrendo em uma sinergia simbiótica.

Isso posto, quando penso em apresentar a “Jornada do Herói Mitológico” eu penso em uma forma de facilitar o acesso, a compreensão e analise da leitura, da leitura de mundo inclusive, e penso que isso não se restringe a literatura, mas se expande por toda Cultura, senão por toda vida.

Por isso nessa série de seis posts eu vou abordar diferentes formas de expressão cultural, e, quem sabe, questões da vida como um todo. Começando por uma das formas de arte que mais me dá prazer, a Música.

Tenho certeza que a maioria dos leitores já ouviram a música abaixo ao menos uma vez, mas ouçam novamente.

O caminho heroico de Eduardo

Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar

Ficou deitado e viu que horas eram

Enquanto Mônica tomava um conhaque

No outro canto da cidade, como eles disseram

 

Eduardo é apresentado em seu mundo comum, deitado, provavelmente (em nosso imaginário) na casa dos pais. Esse é um mundo confortável, um mundo sem “Magia”, o mundo comum.

Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer

E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer

Um carinha do cursinho do Eduardo que disse

Tem uma festa legal, e a gente quer se divertir

Eduardo então recebe o chamado para a aventura, nesse casso uma aventura amorosa, uma aventura que acontece no coração, ou no psicológico (para os menos românticos.

Mônica representa diversos papéis na Jornada de Eduardo. Alguns podem entender, inclusive, que ela seja a própria Jornada.

 

Festa estranha, com gente esquisita

Eu não tô legal, não aguento mais birita

E a Mônica riu, e quis saber um pouco mais

Sobre o boyzinho que tentava impressionar

E o Eduardo, meio tonto, só pensava em ir pra casa

É quase duas, eu vou me ferrar

Fora de sua zona de conforto Eduardo busca por segurança e procura motivos para recusar o chamado, se nega de imediato a envolver-se com Mônica (gente esquisita), fora de seu contexto social de “boyzinho”.

Então busca por motivos plausíveis para não embarcar na aventura, voltar para “casa” e continuar em seu seguro “Mundo comum”.

Por outro lado, Mônica já começa, aqui a atuar em um de seus papéis nesse história, como Mentora, ela demonstra interesse e procura saber mais sobre Eduardo, fica implícito que as ações adiante não aconteceriam sem a sua intervenção.

 

Eduardo e Mônica trocaram telefone

Depois telefonaram e decidiram se encontrar

O Eduardo sugeriu uma lanchonete

Mas a Mônica queria ver o filme do Godard

 

Tendo encontrado sua Mentora Monica, Eduardo é motivado por esta a continuar em direção a sua jornada, a sair de seu “Mundo comum”. Afinal, “quem é Godard”?

Se encontraram, então, no parque da cidade

A Mônica de moto e o Eduardo de camelo

O Eduardo achou estranho e melhor não comentar

Mas a menina tinha tinta no cabelo

Eduardo, com ajuda de sua Mentora, então rompe, atravessa, o primeiro limiar em direção a aventura, a sua Jornada, saindo de seu mundo comum.

Já se encontrou com Mônica, ele não pode mais voltar atrás nisso, tendo ela “tinta no cabelo” ou não. Mesmo que retornasse daqui seu mundo não seria mais o mesmo.

 

Eduardo e Mônica eram nada parecidos

Ela era de Leão e ele tinha dezesseis

Ela fazia Medicina e falava alemão

E ele ainda nas aulinhas de inglês

 

Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus

Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud

E o Eduardo gostava de novela

E jogava futebol de botão com seu avô

 

Ela falava coisas sobre o Planalto Central

Também magia e meditação

E o Eduardo ainda tava no esquema

Escola, cinema, clube, televisão

 

Mônica “era de Leão”, “fazia Medicina”, “falava alemão”, “gostava do Bandeira e do Bauhaus, Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud”, “falava coisas sobre o Planalto Central, também magia e meditação”.

Esses foram os inimigos apresentados a Eduardo, essa gama de diferenças a serem superadas.

E mesmo com tudo diferente, veio mesmo, de repente

Uma vontade de se ver

E os dois se encontravam todo dia

E a vontade crescia, como tinha de ser

 

Mas Mônica, não só como Mentora, mas, agora também como Aliada, o ajuda a passar por todos esses desafios.

Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia

Teatro, artesanato, e foram viajar

A Mônica explicava pro Eduardo

Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar

 

Junto com sua Mentora e Aliada, Eduardo vai superando obstáculos e crescendo em seu papel de Herói.

Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer

E decidiu trabalhar (não!)

E ela se formou no mesmo mês

Que ele passou no vestibular

 

E os dois comemoraram juntos

E também brigaram juntos muitas vezes depois

E todo mundo diz que ele completa ela

E vice-versa, que nem feijão com arroz

 

Claro que durante esse percurso, se aproximam as dificuldades desconhecidas deste novo mundo, se apresentas os desafios maiores, Eduardo está como se aproximando de uma Caverna Oculta, onde deverá enfrentar o maior e derradeiro desafio.

Construíram uma casa há uns dois anos atrás

Mais ou menos quando os gêmeos vieram

Batalharam grana, seguraram legal

A barra mais pesada que tiveram

Construção da Casa, Gêmeos, falta de grana, a “barra mais pesada” que Eduardo já enfrentou, a sua provocação suprema antes da conclusão de sua Aventura.

Um momento de purificação, um momento que quando superado deixa para trás todas a dificuldade e apresenta um Herói renovado. Eduardo certamente não é mais “o boyzinho” que tentava impressionar depois disso.

Essa também é a Recompensa por sua Jornada.

 

Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília

E a nossa amizade dá saudade no verão

Só que nessas férias, não vão viajar

Porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação

Então Eduardo volta para casa, um novo Herói, outra pessoa, de volta para o seu mundo comum, mas que nunca mais será o mesmo, pois Eduardo, após toda a “barra pesada” passa por uma Ressurreição, volta outro.

E consigo ele trás o Elixir resultante dessa Jornada. Sabemos que nem Eduardo, nem o seu mundo poderão ser os mesmos, afinal “o filhinho do Eduardo tá de recuperação”.

Atos e Cenas

O Primeiro Ato: A apresentação

O Mundo Comum

Normalmente os heróis são apresentados em seu mundo comum, antes de serem heróis, antes de partirem em uma jornada de conquista e renascimento. Em algumas obras essa apresentação pode estar cronologicamente alterada, acontecendo em feedbacks, em citações, mas está lá.

Aqui o herói é apresentado em sua mortalidade, necessário para percebermos as dificuldades do caminho que o aguarda.

O chamado para a Aventura

No início da Jornada, ainda em seu Mundo Comum o Herói recebe um chamado para a aventura, pode de fato ser um "chamado", uma mensagem, ou um acontecimento, algo que tenta tirá-lo da confortável posição em que se encontra e leva-lo a um novo mundo, um mundo "Mágico", um mundo de Aventura.

Novamente é possível encontrar obras em que a identificação desse chamado específico não é apresentada logo em seu início, porém ela normalmente está lá, descrita em algum ponto da obra.

A Recusa do Chamado

O Mundo Comum, como já disse, é apresentado como o local de conforto do Herói assim, como em nossas vidas reais, ele comumente resiste a deixá-lo, recusando assim o "Chamado para a Aventura" e buscando motivos para continuar e decide permanecer na comodidade.

Essa "Recusa" em alguns casos não é opcional, em algumas obras essa recusa é representada, por exemplo, por impedimentos físicos para realizar a jornada, uma prisão, uma enfermidade. Perceba que esses elementos tomam formas diferentes em cada obra, variando do físico para o psicológico, do real para o imaginário, da mesma forma que podem ter sua ordem cronológica completamente alterada para conveniência e sucesso da narrativa.

O encontro com o Mentor

A maioria dos heróis é apresentado em algum momento ao seu Mentor, alguém para auxiliá-lo, para conduzi-lo por sua jornada, um dos papéis desse mentor é, inclusive, estimular a travessia do "Mundo comum" para o novo mundo de Aventuras, que a partir de agora chamarei de "Mundo Mágico", a título de facilidade.

O mentor não é necessariamente uma pessoa, pode ser uma série de acontecimentos, pode ser um código de ética, pode ser uma voz subconsciente, novamente, a forma do elemento que apoia a jornada é alterada para melhorar a história contada. 

Os papéis dentro da Jornada do Herói, incluindo o papel de Mentor, pode ser acumulado em uma mesma personagem, em um mesmo acontecimento, em uma mesma ideia.

A travessia do primeiro limiar

Comumente um fato, um acontecimento, mas pode ser substituído por uma pessoa, um fator psicológico ou o que for mais adequado para a história em questão, leva o Herói a sair em sua Jornada pelo "Mundo mágico", mesmo que tenha resistido e deseje o conforto do "Mundo comum". Aliás, muitas obras retomam esse desejo em diversos momentos.

Esse acontecimento, de travessia, é sempre impactante (muitas vezes traumático) de forma a não permitir um regresso, ao menos não um regresso sem consequências importantes. Já lí alguns autores chamando esse momento de "Oh Shit Moment", aquele momento em que algo acontece e tudo muda!

2º Ato: O Conflito

Teste, Aliados e Inimigos

Durante sua jornada é necessário que o Herói enfrente diversos conflitos, afim de transformá-lo no Herói de fato, esses em geral são apresentados em ordem crescente de dificuldade, assim, antes dos desafios mais importantes uma série de acontecimentos, pessoas, ideias e toda gama de recursos de narrativa percorre a caminhada do Herói para permitir a esse suas provações.

Testes, Aliados e Inimigos são apresentados para o Herói nos mais diversos formatos, não se incomode em notar que o Mentor também é um aliado, ou que um aliado também é um inimigo, o que acaba oferecendo um teste a este herói. Esses arquétipos, assim como na vida real, não são “preto no branco” permitindo uma construção paradoxal por parte dos autores.

Aproximação da Caverna Oculta

O momento em que o Herói se aproxima de meu maior desafio, o momento que antecede e prepara quem acompanha a jornada para o seu ápice, normalmente rodeado de dificuldades maiores do que o restante da história contado.

Este é o momento em que se cria, ou em poucos casos se desfaz, a tensão necessária para o processo de catarse acontecer com a chegada do desafio maior da Jornada do Herói.

Provocação Suprema

O desafio máximo para o Herói, muitas vezes até uma morte, é comum em muitas obras que o Herói sofra nesse momento uma morte simbólica, algumas vezes até real, para que possa retornar melhor, mais maduro, compreendendo de fato o seu papel nesta Jornada.

Derrotar o inimigo final não pode ser uma tarefa frívola. Porém, o inimigo final, não necessariamente seja uma personagem, pode ser um desafio, um fato, uma má notícia, qualquer coisa que abale, atinja, o Herói com tanta força, física ou psicológica, que o leve a um crescimento maior, um amadurecimento forçado, podemos dizer.

Recompensa

Superada a Provocação Suprema o Herói deve receber sua recompensa, novamente esta pode ter a forma e natureza mais diversa conveniente a obra.

3º Ato: A Resolução

O Caminho de Volta

A Jornada do Herói, assim como a vida na opinião de alguns, representa um ciclo, então na maioria das obras após “completa” sua missão ele inicia o retorno para seu lar, para o seu “Mundo comum”, que em muitas obras é mesmo um caminho de volta, em outras é apenas uma citação, mas, em geral acontece.

Ressurreição

O Herói retorna ao Mundo comum, mas ele não é mais o mesmo, ele deve ter passado por uma espécie de ressurreição que o limpe de toda a sujeira que enfrentou no Mundo Mágico, para só assim poder realmente retornar para casa.

Elixir

Outra diferença desse herói que retorna é que ele traz consigo um Elixir, ele traz consigo a Recompensa, a cura para os males. Ele não apenas retorna, mas em geral, seu retorno impacta e modifica, quase sempre, positivamente, o mundo para o qual está regressando.

A jornada heroica de João


Veja, João de Santo Cristo, vivia no conforto e “marasmo da fazenda” onde ele era o “terror”, não tinha grandes desafios. Mesmo vendo o pai ser assassinado ele resiste ainda neste mundo de “conforto” (seu Mundo Comum), mesmo com sua vontade ele ainda recusa o Chamado por um tempo, até resolver ir viajar.

Então foi mandado ao reformatório o que aumenta o seu terror e desentendimento, resolve ir para Salvador e encontra com um Boiadeiro que lhe permite atravessar o primeiro limiar, levando João para Brasília, de onde ele nunca poderia voltar sendo o mesmo.

Em Brasília conhece um Neto bastardo de seu Bisavô, que atua como seu Mentor, introduzindo João no tráfico e em seus negócios.
  
Cortar Madeira, Baixos Salários, Trabalho, Fome, Descaso, seguido das tentações e as más influências, sendo inclusive estuprado, são os testes e inimigos que ele tem que enfrentar.

Mesmo com Aliados como Maria Lúcia e Pablo, João se vê aproximando-se da Caverna Oculta, ao perder o emprego e retornar ao tráfico e então aparece Jeremias, que lhe toma Maria Lúcia, culminando em um duelo mortal, sua Provocação Suprema.

João é atingido, praticamente morto, sente o sangue em sua garganta mas consegue ver sua Recompensa, Maria Lucia que retorna para ele, com a arma de seu primo, com a qual ele pode matar seu principal inimigo.

Aqui João também já aponta o seu Caminho de Volta, simbólico, se recordando da infância.

A morte de Jeremias é o seu ato de Ressurreição, de vingança, e, completando, Maria Lucia tira a própria vida para estar junto de Santo Cristo, seu amor, seu Elixir.

E por isso o “povo declarava que João de Santo Cristo era santo por que sabia morrer”.

Por último

Percebam que nem Eduardo, menos ainda João, são representações de um ideal de Herói romântico. forte, bom acima de qualquer suspeita, imputável de perfeição, alheio a culpa, nenhuma dessas características é comum as duas personagens.

Eduardo é um “boyzinho”, sem experiência alguma de vida aparentemente, provavelmente mimado, quando a história começa. João de Santo Cristo já desejava ser bandido desde criança e, mesmo tentando, não consegue escapar desse comportamento marginal, quase um “anti-herói”. Mas para ambos é possível reconhecer o que chamo aqui de a “Jornada do Herói”.

Aqui, e nos próximos textos que produzirei, o Herói não é tratado como o salvador, a bondade e a perfeição, ele é o objeto usado para conduzir a história, é a personagem cujo a jornada alimenta a trama e o enredo permitindo que a narrativa ocorra. E, acresço, o Herói, deste ponto de vista, muitas vezes nem mesmo será a personagem principal.

Aqui o Herói é apenas o mecanismo de “contação” usado para unir a história e seus componente, somente um condutor da narrativa.

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