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A Jornada do Herói (Parte 6 de 6): Já conhecemos o labirinto de todas as jornadas

Primeiro Joseph Campbell escreveu o “Herói de Mil Faces” onde, influenciado pelos trabalhos de Jung sobre os arquétipos e o inconsciente coletivo, buscou o que veio chamar de Monomito, na análise das histórias mitológicas teria “descoberto”, ou formulado, uma linha guia, condutora de todas elas. 

Assim, todos os Mitos seriam o mesmo roteiro básico, explicando em poucas palavras. De acorco com Rincón (Rincón, 2020):

Ele mesmo (Campbell, 2020) diz que “existe uma certa seqüência de ações heróicas, típica, que pode ser detectada em histórias provenientes de todas as partes do mundo, de vários períodos da história. Na essência, pode se até afirmar que não existe senão um herói mítico, arquetípico, cuja vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, por muitos, muitos povos.

Esta ‘história oculta’ dentro de outras histórias é chamada por Campbell de ‘A Jornada do Herói Mitológico’, e tem servido de base e orientação para profissionais que estudam e se dedicam às diversas formas do “storytelling” (o contar histórias), desde psicólogos, escritores e contadores de histórias, dramaturgos, roteiristas e críticos de cinema e até mesmo entre autores e mestres de RPG.

Mais tarde o escritor Christopher Vogler revisitou o trabalho de Campbell e traz “A Jornada do Escritor”, onde aplica o Monomito em obras mais recentes, inclusive o cinema e retoma a compreensão de que todos os Mitos, mesmo os modernos, tem o mesmo fio condutor. 

Um herói sai de seu seguro mundo para aventurar-se num mundo hostil e estranho

Vale aqui novamente ressaltar que o Herói aqui não carrega necessariamente a perfeição que a palavra nos remete. Campbell (Campbell, 2020) busca definir para a mitologia, dizendo que:  “Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em busca da idéia semente, a idéia germinal que tenha a potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo.”

Valle (Valle, 2020) complementa:

“Em um estudo mais detalhado pode-se perceber que o conceito de herói está intimamente ligado à sociedade que o criou, bem como à época de sua criação. Isso porque as qualidades inerentes a um determinado herói devem estar intimamente ligadas aos valores de sua época e às necessidades de um povo.”

E continua. “A classificação de uma personagem como ‘herói’ ou ‘vilão’ pelos critérios consensuais dependerá do grupo em que ela esteja inserida e dela.” 

“Não se pode deixar de notar nesse ponto a influência da ideologia dominante na construção destes personagens.”

Ainda Valle (Valle, 2020) diz “o motivo da jornada é a falta de alguma coisa. O herói se sente incompleto e vai à busca de sua plenitude. O resultado é a transformação do próprio herói.”

Esse “fio condutor”, essa jornada, que venho chamando de “Jornada do Herói” é composta por uma estrutura simples e adaptável que apresentarei aqui em três atos e alguns passos. Embora esses sejam aqui na maior parte do tempo representados como atos ou ações no mundo físico, todos eles podem acontecer apenas no âmbito psicológico da personagem também, como bem nota Rincón (Rincón, 2020): “A ‘jornada do herói’ pode ser externa ou interna”.

E, Rincón (Rincón, 2020), resume essa jornada e passos da seguinte forma:

  1. O Herói é apresentado no mundo comum, onde recebe um chamado à aventura.
  2. Primeiro recusa o chamado, mas num encontro com o mentor é encorajado a fazer a travessia do primeiro limiar e entrar no mundo especial, onde encontra testes, inimigos e aliados.
  3. Na aproximação da caverna oculta, cruza um segundo limiar onde enfrenta a provação suprema.
  4. Ganha sua recompensa e é perseguido no caminho de volta ao mundo comum.
  5. Cruza então o terceiro limiar, experimenta uma ressurreição e é transformado pela experiência.
  6. Chega então o momento do retorno com o elixir, a benção ou o tesouro que beneficia o mundo comum.

Como disse o próprio Campbell (Campbell, 2020), “o labirinto é conhecido em toda a sua extensão. (..) Normalmente, perfaz se um círculo, com a partida e o retorno.”  

Primeiro Ato: A Apresentação

Neste ato a narrativa procura conceituar o receptor quanto a normalidade do Herói, o que lhe é confortável, para que se possa compreender os desafios e evolução que deverá ocorrer no restante da história, os sacrifícios que levam aos louros.

Mundo Comum

A primeira coisa pode ser apresentar o mundo comum desta personagem, onde e em qual situação ela se sente confortável. Muito comum nas obras mais modernas que essa apresentação seja pulverizada por toda ela, digamos que a narrativa não começa no início, mas ele é contado ao longo da mesma.

Chamado à Aventura

Algo acontece, pode literalmente ser um chamado, para apresentar a possibilidade da Aventura ao Herói. Qualquer situação, coisa ou outras personagens que convide-o para fora de seu mundo comum podem ser identificados como o Chamado. 

Rincón (Rincón, 2020) pontua que “o chamado à aventura (..) deixa claro qual é o objetivo do herói” e “uma vez apresentado esse chamado, o herói não pode mais permanecer indefinidamente em seu mundo comum”

Recusa do Chamado

Como dito, o “Mundo Comum” é confortável para a personagem, então é natural que ela relute em aceitar o Chamado para deixá-lo. Essa recusa na maioria das vezes é literal e facilmente notada.

“Não atender ao chamado é essencialmente a recusa em se libertar do ego e dos interesses próprios; é não aceitar morrer para o mundo e renascer liberto.” De acordo com Arantes (Arantes, 2020).

Mas, Rincón (Rincón, 2020) alerta “quando o herói recusa, é necessário que em algum momento surja alguma influência para que ele vença esse medo”.

Encontro com o Mentor

Comumente junto ou a seguir da Recusa do Chamado o herói pode encontrar com um Mentor (uma personagem, uma personificação ou até um código de conduta) que pode acompanha-lo até determinado ponto da jornada e tem, inclusive, a função de auxiliar o herói na aceitação do chamado e a travessia para o mundo de Aventuras.

Na definição de Rincón (Rincón, 2020) “a função do mentor é preparar o herói para enfrentar o desconhecido quando ele atravessar o primeiro limiar” mas “o mentor só pode ir até certo ponto com o herói, a partir do qual o herói deve prosseguir sozinho ao encontro do desconhecido”.

Travessia do Primeiro Limiar

Mais um fato leva o Herói a atravessar do seu mundo confortável para o mundo de aventuras. Muitas vezes esse acontecimento é traumático e violento, mas sempre representa um limiar rompido, após ingressar no mundo de aventuras o Herói não pode retornar ao mundo comum, pelo menos não passar pela sua jornada.

Segundo Ato: O Conflito

A maioria das obras se desenvolve neste ato, nos momentos de conflito, os momentos em que a personagem será desafiada e terá de superar obstáculos e sobretudo superar-se.

Esses conflitos, novamente, não precisam ser de ordem física ou visíveis sempre, mas comumente são de ordem psicológica.

Teste, Aliados e Inimigos

Algumas obras trazem esses itens em sequência, os testes são apresentados, os aliados e os inimigos vão aparecendo, sendo agregados ou sendo ignorados um a um. Mas é bastante comum que estes sejam misturados a trama, embrenhados por toda narrativa, assim esse passo se repete por várias vezes.

Aproximação da Caverna Oculta

Aquele momento de tensão real, o ápice que, comumente, precede o fim das Narrativas. O Capítulo que Machado de Assis chamou de “Plus Ultra!” em “O Alienista”, para ser didático.

Em muitas obras, a Caverna, tem realmente uma representação física ou gráfica aproximada a uma caverna de fato.

“A caverna oculta é o ponto mais ameaçador do mundo especial”, diz Rincón (Rincón, 2020).

Campbell (Campbell, 2020) traz uma boa alegoria sobre.

“A barriga é o lugar escuro onde acontece a digestão e uma nova energia é criada. A história de Jonas na barriga da baleia é um exemplo de tema mítico praticamente universal: o herói é engolido por um peixe e volta, depois, transformado.”

Provocação Suprema

O herói enfrenta o seu arqui-inimigo, quase morre, aquele momento em que tudo está perdido, mas a provação é superada. Novamente, vale lembrar que essa provocação pode ser de ordem psicológica também. 

Campbell (Campbell, 2020) enfatiza a sua necessidade na narrativa: 

“O domínio sobre o medo propicia coragem à vida. Esta é a iniciação fundamental de toda aventura heróica: destemor e realização.”

“Na provação suprema, o herói tem que morrer para renascer em seguida.” (Rincón, 2020)

Recompensa

Passando pela “Provocação Suprema” o Herói deve receber alguma recompensa, muitas vezes relacionada ao próprio chamado da Aventura. Aquilo que o fez sair de seu conforto é alcançado finalmente.

Terceiro Ato: Resolução

A história não acaba em nada, na maioria das vezes a personagem deve regressar ao seu Mundo Comum, renovado e mais maduro, mas o caminho de volta deve ser mostrado, o caminho de volta faz parte da jornada.

Caminho de Volta

O herói deve percorrer um caminho que o leve novamente ao seu mundo comum, principalmente nessa etapa, os passos neste ato, talvez sejam o que mais convencionalmente se misturam.

Ressurreição 

Em algumas obras a personagem realmente passa por uma ressurreição, literal, antes de poder voltar de vez ao mundo comum. Aqui ela alcançou a sua maturidade, transmutou-se.

“A Ressurreição é o último momento de perigo para o herói e, por isso, deve ser o mais forte, o momento que o leva mais próximo da morte.(..) É importantíssimo que, após essa etapa, o herói adquira uma nova personalidade, menos egoísta, mais experiente e sábio.” Afirma Rincón (Rincón, 2020).

Completado por Campbell (Campbell, 2020) quando diz: 

Esse é o motivo básico do périplo universal do herói – ele abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura

Arantes (Arentes, 2020) completa: 

“O herói compreende a insignificância dos pares opostos, bem e mal, luz e sombra, e contempla a perenidade de todas as coisas. Essa é a apoteose do herói, a conquista do elixir da vida eterna.”

Elixir

Ao retornar para o “Mundo Comum”, transmutado, renovado, transformado o Herói carrega consigo o elixir, a conquista, mesmo de volta ao mundo de conforto ele não será mais a mesma personagem.

Nossa jornada termina aqui

Campbell disse uma vez que os mitos tem todos o mesmo núcleo narrativo, o Monomito. Vogler demonstrou esse mesmo Monomito como núcleo de obras da mídia moderna.

Nessa série de seis posts eu identifiquei o esse mesmo núcleo narrativo em 14 obras, passando pela música, cinema, mídias interagentes, contos infantis e literatura, incluindo uma história real, não incluí aqui, por comodidade, outras mídias como as histórias em quadrinhos, o marketing e a publicidade nem a mídia jornalística, mas certamente poderia demonstrar nestes o mesmo núcleo.

Uma personagem saí de sua zona de conforto para enfrentar provações e desafios que a levarão ao amadurecimento retornando assim transformada.

Referências

Almeida, Davi Fontebasso M. A Jornada do Herói. Análise de Storytelling. Disponível em https://prezi.com/_ke3dk4sjecl/jornada-do-heroi/. 19.ago.2020. Acessado em 10.out.2020.

Arantes, João M. BETTOCCHI, Eliane. Jornada da Personagem Heroica no Mito e no Conto. Ouro Preto: XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Ouro Preto - MG – 28 a 30/06/2012. Acessado em 30.set.2020.

CAMPBELL, JOSEPH. O PODER DO MITO: V A SAGA DO HEROI. Disponível em https://www.revistaartereal.com.br/wp-content/uploads/2014/02/A-SAGA-DO-HER%c3%93I-Joseph-Campbell.pdf. Acesado em 24.set.2020.

Ricón , Luiz E. II Simpósio RPG & Educação: A Jornada do Herói Mitológico. Disponível em https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/34032763/A_Jornada_do_Heroi_Mitologico.pdf?1403671365=&response-content-disposition=inline%3B+filename%3DII_Simposio_RPG_and_Educacao_A_Jornada_d.pdf&Expires=1600970185&Signature=OA281p44o1Cicgiq6uTiCqQQsI2PdrZKXhcEztkvBE9k92xyB0O4H2YuMORUWElqG8YanAbnJ4J7Jt7l3AyTjc5k5DjItEs7VP7AWsdR-~Id9caia9Ww7UKZGyrLGSEF3IMLdh7KYFkryfKdeMzJJT6POUSny8JKefo9Tm9cBd1wMteeTd20nKVixmQiEMT5CpHr4IujGq77ceuPdXzpUkHNfErb6A6Fr5MT-W4PcJOg43Uk9KuripIFFDRwiTpcodqK20Em69dNCO9aWOZ6tMj26v7O~ZNpMrLLrme2bDJ6GSRoOkpoj1A2HhkKVCgKUoqIgbif5s1IHJlos9-1vQ__&Key-Pair-Id=APKAJLOHF5GGSLRBV4ZA.  Acessado em 24.set.2020.

Valle, Cléa Fernandes R. Telles, Verônica. O MITO DO CONCEITO DE HERÓI. Disponível em https://www.revistadoisat.com.br/numero2/01_O_Mito_do_Conceito_de_Heroi_Clea_e_Veronica.pdf. Acessado em 11.out.2020.


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