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Quem é Quem na Narrativa - Os Gonis...tas...

     E cá estamos novamente. Empolgado pela imersão que Davi iniciou em teoria narrativa com a série sobre a Jornada do Herói, tive a ideia de continuar essa conversa falando sobre um outro aspecto central de Teoria Narrativa: os personagens.

    Diferente da série anterior que se propunha a ser uma quantidade delimitada de postagens para contar uma história delimitada, essa postagem será mais aberta, uma vez que existe um número sem fim de maneiras de classificar, analisar e definir tropos para personagens. O contraponto é que não irei me comprometer a fazer postagens diárias. Se mais nada, tentarei me comprometer a fazer pelo menos uma postagem sobre o assunto por semana - note a palavra "tentarei" na frase.

    Fiel adepto que sou do "comecemos do começo", acho que a primeira coisa importante antes de falarmos de tipificação de personagem, tropos ou qualquer coisa é entender quais papéis os personagens podem ter na nossa história. Vale mencionar aqui que quando falamos em papéis narrativos, há um certo consenso geral em se aceitar os papéis conforme foram definidos por Aristóteles, Ésquilo e Sófocles no século V A.C., ainda que não se saiba muito bem qual dos três começou a "dar nome aos bois" por assim dizer; à partir daí cada autor vai adicionar ou remover denominações a outros papéis pós-clássicos conforme achar conveniente. Para a minha, a sua, a nossa conveniência, irei me ater aos quatro papéis clássicos;


    Os Papéis Clássicos (gonistas - do grego "agonisthes": ator, competidor)

  • Protagonista (do grego protos: primeiro, à frente): O "personagem principal" ou "personagens principais". São aqueles a quem os consumidores da mídia de divulgação escolhida mais acompanharão ao longo da história, bem como quem funciona como força-motriz para a narrativa (há uma subdivisão entre Protagonistas Ativos e Protagonistas Passivos e como cada tipo move a narrativa, mas falaremos sobre isso em outro post futuramente;
  • Deuteragonista (do grego deuteros: segundo): O "coadjuvante" ou personagem secundário na história. Ele também tem um desenvolvimento sólido na história, mas normalmente fica aquém do protagonista, ainda que não muito. Os personagens relegados ao planto de fundo fazem parte do próximo grupo.
  • Tritagonista (do grego tri: três): Os personagens que existem na narrativa mas são jogados para o plano de fundo e relegados às maiores trivialidades.
  • Antagonistas (do grego anti: contra, oposto): Aquele que se opõe ao protagonista e gera os conflitos que o impedem de alcançar seu objetivo ou, de alguma forma, causam a movimentação do protagonista. Note que o antagonista não é necessariamente um vilão no sentido clássico, uma vez que ele não é necessariamente maligno, mas apenas gera uma obstrução narrativa para o protagonista.
    Para facilitar um pouco nossa compreensão, vamos com um exemplo e uma recomendação, e roubando a ideia da série da Jornada do Herói, vamos sair um pouco da mídia escrita e ir para um nicho do mundo nerd: os animes. Nesse caso específico, um anime que eu, pessoalmente, adoro:

"Eu amei Ophelia. Quarenta mil irmãos não poderíam, com toda a quantidade de seu amor, se igualar ao meu. O que você fará por ela?"

    "Mas André", dir-me-ia você, "essa citação é de Shakespeare". Pois é, meu lépido amigo, ela é, e eis aqui o charme mor desse anime e talvez (sejamos bastante sinceros, provavelmente, na verdade quase com certeza) o motivo pelo qual eu goste tanto dele: Zetsuen no Tempest (Blast of Tempest): Civilization Blaster é uma releitura de algumas obras de Shakespeare (Uma mistura de A Tempestade com Hamlet com uma pitada de Macbeth e um leve toque de Otelo para apimentar).

    Mas existe um motivo pelo qual eu selecionei este anime específico (além de eu ser um fan boy confesso de Shakespeare): porque Zetsuen no Tempest é lindamente escrito (erm, exceto o último episódio, sério, fique à vontade para ignorar o último episódio, alias eu SUGIRO que ignore o último episódio) e é um exemplo magistral para os papéis dos quais falamos aqui.

    Primeiro de tudo, temos os papéis bem definidos:
  • Protagonistas: Fuwa Mahiro e Takigawa Yoshino são nossos personagens centrais. Num mundo que está morrendo, eles são duas pessoas que parecem não se afetar por toda a destruição; logo no começo o anime nos revela o motivo disso: os dois já estão emocionalmente destroçados pela morte de Fuwa Aika. Mahiro era o irmão dela e Yoshino, sem que Mahiro soubesse, era o namorado dela. Isso nos coloca em uma dinâmica de personagens bem interessante, uma vez que nós sabemos o segredo que Mahiro ainda tem que descobrir.
  • Antagonistas: A princípio ambos querem vingar a irmã de Mahiro, mas esta dinâmica muda em determinado ponto quando Yoshino revela saber quem era o namorado da irmã dele. Nesse ponto, ainda que os dois mantenham o papel de protagonistas, Yoshino assume o papel de antagonista de Mahiro, sem que eles se tornem inimigos.
  • Deuteragonistas: Hakaze Kusaribe (caso a lista que você esteja usando tenha o espaço do Mentor discriminado, ela provavelmente entraria nesse espaço) e Fuwa Aika (mesmo morta) ocupam os papeis secundários mais relevantes. De fato, elas são os motores da narrativa, uma vez que ambos os protagonistas possuam um papel mais passivo de estar apenas reagindo à situação diante deles.
  • Tritagonistas: Kusaribe Samon, Kusaribe Natsumura, Hoshimura Jonichirou e Hanemura Megumu assumem o papel de Tritagonistas. Eles compõe, majoritariamente, o plano de fundo da narrativa, e ainda assim são relevantes para ela. De fato, vem deles uma das "descobertas" mais relevantes da história com a ação que abre o Grand Finalle narrativo.
    As dinâmicas apresentadas na história se alteram e manifestam-se de formas diferentes conforme a história avança. A narrativa guia os personagens de uma maneira genial, e ainda que os protagonistas sejam passivos na maior parte da narrativa, ela não se torna arrastada, uma vez que os deuteragonistas e tritagonistas conseguem fazer com que a narrativa avance de maneira dinâmica.
    O anime também nos mostra formas muito criativas de como os personagens podem mudar e acumular "papéis" de acordo com a narrativa, seja pelo exemplo citado de Yoshino, mantendo-se protagonista, tornar-se antagonista de Mahiro, seja no conjunto de dois episódios que contém a melhor cena do anime para mim (episódios 17 e 18), onde, durante um dos pontos mais cruciais da história, Yoshino se torna o próprio antagonista.
    Enfim, espero ter conseguido exemplificar um pouco sobre os Papéis Clássicos e se, de brinde, consegui despertar uma vontade no seu coração de assistir Zetsuen no Tempest, tanto melhor!


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